Programa de Ações Afirmativas forma quase 10 mil cotistas em 20 anos

Além de destinar vagas específicas, a universidade conta com programas que garantem a permanência universitária
Por Eduardo Almeida - jornalista / Fotos Renner Boldrino
08/03/2024 08h15 - Atualizado em 13/03/2024 às 15h25
Tâmara Duarte e Ewelyn Marília

Tâmara Duarte e Ewelyn Marília

O ano era 2020. O mundo passava pela maior crise de saúde do século. Mas, apesar das incertezas provocadas pela pandemia de covid-19, a estudante Ewelyn Marília recebia a notícia que transformaria - de forma positiva - não apenas a sua vida, mas a de todos os que estavam ao seu redor. A estudante era a primeira pessoa de sua família materna e paterna a ser aprovada em uma instituição de ensino superior.

Ewelyn Marília foi beneficiada pelo Programa de Ações Afirmativas da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), implantado em 2003, que, ao longo dos últimos 20 anos, garantiu a formação de quase 10 mil estudantes. O programa assegura que milhares de jovens não só ingressem na universidade pública, mas que consigam se manter ao longo de todo o curso, mudando caminhos que pareciam previamente definidos.

“Venho de uma realidade na qual poucos conseguem acessar a universidade. É um local onde a gente conta nos dedos os que conseguem ingressar no ensino superior e até os que conseguem concluir o ensino médio. As portas que se abrem, a partir da entrada na universidade, são portas não só para a minha carreira profissional, mas do ponto de vista pessoal”, afirmou Ewelyn Marília, que cursa licenciatura em História.

Casos como esse não são isolados. Natural do município de Barreiros, no estado de Pernambuco, a estudante universitária Ana Miranda também ingressou na Ufal em 2020 por meio do Programa de Ações Afirmativas. No entanto, foi durante a pandemia de covid-19 que as políticas públicas desenvolvidas pela universidade exerceram um papel crucial para que hoje ela esteja na iminência de concluir sua graduação.

Para auxiliar nos gastos domésticos, durante a pandemia de covid-19, a estudante passou a trabalhar em um supermercado da sua cidade. Ana Miranda conta que, se não fossem o apoio e o auxílio financeiro que encontrou no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da Ufal, provavelmente não teria como retornar para o curso na Universidade.

“Na pandemia, fui para a minha cidade, em Pernambuco, e não sabia se conseguiria voltar à universidade por problemas financeiros, porque tudo ficou mais difícil para todo mundo. Foi quando procurei apoio e consegui uma bolsa pelo Neabi que me ajudou a voltar a estudar presencialmente. Provavelmente não conseguiria, se eu não tivesse esse auxílio. Felizmente consegui. E não vejo demérito nisso. Sinto muito orgulho”, contou Ana Miranda.

E acrescenta: “As políticas como ponto de direcionamento me tiraram de um mercado de trabalho para o qual estava fadada. Se eu não tivesse conseguido a bolsa, não teria como deixar o trabalho e voltar para a universidade. As portas que foram abertas são de um novo mundo de trabalho, porque eu saio de um mercado mais braçal e começo a me dedicar a um curso que vai permitir um trabalho mais intelectual”.

Assim como Ewelyn Marília e Ana Miranda, o Programa de Ações Afirmativas da Ufal também faz parte da vida da estudante Tâmara Duarte. Ela, que ingressou na Universidade por meio de cotas raciais, revela que foi graças ao Programa de Permanência Universitária que conseguiu superar percalços financeiros que surgiram ao longo do caminho.

“Muitos estudantes entram, mas abandonam a universidade, porque não têm como se manter. Não tem dinheiro para comer, para se locomover e até para comprar os materiais necessários para o curso. Acabam tendo que deixar o ensino superior para se dedicar a um trabalho. Mas, com o apoio da Ufal, por meio do Neabi, estou concluindo meu curso”, revelou Tâmara Duarte, que está se formando na licenciatura em História.

O Neabi, citado pelas estudantes, é um órgão de apoio acadêmico da Ufal, que trabalha, principalmente, pela manutenção e ampliação das políticas de ações afirmativas, desde o seu acompanhamento e avaliação até a proposição de ações que envolvam o acesso e a permanência estudantil na Universidade. O núcleo também desenvolve projetos de extensão em comunidades quilombolas e indígenas, formação para bancas de heteroidentificação, que são os cursos de promoção da igualdade racial e combate ao racismo, além de formações para professores da rede básica de ensino.

Criado no ano de 1980, sob o nome de Centro de Estudos Afro-brasileiros, o Núcleo tinha como principal objetivo desenvolver estudos e pesquisas para o tombamento da Serra da Barriga, localizada no município de União dos Palmares-AL e considerada símbolo da resistência negra no Brasil. Posteriormente, o Centro se torna Neab [Núcleo de Estudos Afro-brasileiros] e, em 2019, Neabi, incorporando também a temática indígena.

“Ao longo do tempo, o Neabi foi muito importante não apenas para o tombamento da Serra da Barriga, mas também para o desenvolvimento de uma educação antirracista, em interlocução direta da Universidade com a sociedade civil. Foi o Neabi quem propôs e articulou a aprovação do Programa de Ações Afirmativas da Ufal, no ano de 2003, quando a instituição se tornou a terceira universidade a adotar uma política de cotas”, explicou o professor Danilo Marques, coordenador-geral do Neabi.

Além de se fazer presente no Campus A.C. Simões, onde estão lotados Danilo Marques e a vice-coordenadora-geral Rosa Correia, do curso de Relações Públicas, o Neabi também tem representantes no Campus de Engenharias e Ciências Agrárias (Ceca), sob a coordenação da professora Regla Toujaguez; no Campus Arapiraca, mais especificamente na Unidade Educacional de Palmeira dos Índios, sob a coordenação dos professores Mayke Nascimento e Marli Araújo; no Campus do Sertão, coordenado pelos professores Vagner Bijagó e Flávio Moraes.

De acordo com Danilo Marques, essa rede articulada de atores vem obtendo avanços significativos. Após ter contribuído decisivamente para a implantação do Programa de Ações Afirmativas, o grupo liderou uma avaliação da política de cotas na Universidade e está produzindo um relatório detalhado, que deve ser publicado ainda este ano e servirá como base para nortear ações de melhorias.

“A gente vai fazer uma recomendação de pontos que podemos melhorar sobre assistência estudantil e sobre o ingresso de estudantes indígenas, quilombolas, população trans e refugiados. A ideia é aprimorar o que já existe e gerar mais oportunidades para a população do nosso estado”, ponderou o coordenador-geral do Neabi.

Danilo Marques conclui: “A gente pode dizer que nenhum passo em prol das ações afirmativas foi dado, tanto em termos de Brasil quanto em Alagoas, sem a atuação do movimento negro brasileiro e, no caso específico da Ufal, sem a participação do Neabi. Esse Núcleo trouxe a sociedade civil para o debate dentro da Universidade. As conquistas das ações afirmativas na graduação, na pós-graduação e, recentemente, a articulação com a população trans. Tudo isso foi fruto de um trabalho articulado internamente, na Ufal, e com movimentos sociais, por meio de um diálogo saudável”.