Destruição do patrimônio cultural de Maceió é discutida na Bienal

Maior tragédia ambiental urbana causada pela mineração vem apagando a história da cidade
Por Elaine Rodrigues – jornalista / Renner Boldrino - fotógrafo
18/08/2023 16h38

A Avenida Major Cícero de Goes Monteiro, entre os bairros do Bom Parto e Bebedouro, em Maceió, está interditada. Foi bloqueada no Google Maps e já foi apagada do Google Street View. Esse é mais um dos reflexos encontrados cinco anos depois do tremor de terra causado pela extração de sal-gema, apresentado pela professora Adriana Capretz, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), durante a 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas, que classificou o fato como uma perda do patrimônio cultural da cidade.

Adriana é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da área de patrimônio histórico, história e memória. A docente atua com um grupo de pesquisadores focados na área que foi desocupada pela mineradora Braskem, composta por cinco bairros de Maceió [Bebedouro, Mutange, Bom Parto, Pinheiro e uma parte do Farol], em um dano considerado a maior tragédia ambiental urbana causada pela mineração no mundo.

De acordo com a professora Adriana, a perda do patrimônio cultural afeta a todos, não somente os mais de 50 mil ex-moradores da região. “O direito à memória está na Constituição. Não apenas a memória do patrimônio construído, que são os prédios históricos: a gente tem um bairro inteiro histórico, prédio tombado e unidades especiais de preservação. Mas também do patrimônio imaterial, intangível, aquele que está na nossa memória, são as referências, é a sabedoria das pessoas que moravam lá”, explicou.

O legado da Avenida e o abandono do patrimônio

Durante sua explanação, a professora Adriana citou diversas edificações históricas da Avenida Major Cícero de Goes Monteiro, tais como a Igreja Nossa Senhora do Bom Parto, o prédio do Instituto do Meio Ambiente (IMA), a sede do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Alagoas (Sinteal) e o complexo do Centro Sportivo Alagoano (CSA), que estava prestes a completar 100 anos, quando foi desocupado.

“Não é só a história de um clube ligada à história de uma classe operária de Maceió. Gerava emprego, renda e, além de tudo, era ponto de encontro das pessoas, um apoio para a comunidade, para o lazer. Não é só a questão do campo: fechou um campo, faz outro. Não é isso. O que você faz com os pontos de encontros, com as redes de apoio?”, questionou Capretz.

A avenida também tem um único imóvel tombado por lei estadual, que é o Complexo Estadual Nossa Senhora do Bom Conselho, formado pela escola e a capela, construídos em 1886 na época de Dom Pedro II, que foi criado como um asilo de órfãs, das meninas dos pais que morreram na Guerra do Paraguai. Mas não era apenas isso: ainda existiam unidades de saúde, praças, casarões, igrejas.

Apesar de tudo isso, Adriana ponderou que a memória se mantém viva quando há pessoas falando dela, especialmente quando não existe mais o bem material para se relacionar.

“As demolições começaram a ser feitas no Mutange. As pessoas não conseguem mais identificar onde eram as casas delas. As quadras em que elas moravam já não existem mais. É um grande vazio. E retirando o material, o imaterial é diretamente afetado; isso vai afetar as memórias, as lembranças”, lamentou, acrescentando: “A pergunta que não quer calar é: o que vai ser feito daquilo? Não sabemos ainda”, refletiu.

As Gêmeas de Bebedouro

Um dos livros lançados na mesa-redonda que refletiu a destruição do patrimônio cultural de Maceió foi As Gêmeas de Bebedouro e a Poética do Espaço Habitado, da arquiteta Nara Núbia Sá. A escritora contou que o avô dela comprou uma das casas e sua família morou lá até o período em que precisou ser desocupada após ação da Braskem.

As casas foram construídas entre 1920 e 1930 e foi um presente do pai para duas filhas gêmeas que se casaram no mesmo dia. O imóvel é feito de duas casas germinadas, com um jardim único e totalmente idênticas na planta. Os detalhes no piso, no azulejo decorado e em cada parte da casa mostram o capricho do pai das gêmeas, que utilizou muitos materiais importados na construção.

“É muito sério esse problema. Não é só um prejuízo material, mas um prejuízo incalculável para as pessoas que perderam e estão perdendo toda a sua memória afetiva”, destacou Nara.

A Cidade Engolida

Outra obra discutida na 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas sobre o assuntou foi A Cidade Engolida, organizada pelas professoras Natallya Levino, da Faculdade de Administração, Economia e Contabilidade (Feac) da Ufal, e Marcele Fontana, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O livro tem como base vários estudos desenvolvidos por meio de um projeto de iniciação científica iniciado em 2020, com a participação da Ufal, da UFPE e da Universidade de Brasília (UNB).

“É a visão do começo do desastre. A gente ouviu muitos moradores e instituições em 2020, quando o tema ainda era muito novo e as pessoas estavam se apropriando da ideia. E por ser o maior desastre socioambiental em área urbana do mundo em curso, tem pouca obra falando sobre o tema. Só há três livros e esse que vem é o quarto, inclusive, para ser utilizado como material bibliográfico para o curso de Geografia EaD da Ufal”, contou Natallya.

O e-book traz conceitos acadêmicos sobre o assunto, em uma perspectiva científica sobre a visão econômica e financeira dos moradores; os impactos sobre o turismo na região; e a responsabilidade social e corporativa da empresa de mineração. O e-book está disponível para ser acessado por toda população por meio do link.