Ufal e Sociedade: Universidades públicas brasileiras no contexto atual

Na estreia da coluna Ufal e Sociedade, a reitora Valéria Correia fala sobre a importância e a situação da Universidade Federal de Alagoas e das demais instituições públicas de ensino superior no país
Por Ascom Ufal
03/07/2019 17h24 - Atualizado em 23/09/2019 às 11h31
Reitora Valéria Correia, na entrevista de estreia da coluna Ufal e Sociedade.

Reitora Valéria Correia, na entrevista de estreia da coluna Ufal e Sociedade.

Iniciando uma série de entrevistas que serão veiculadas semanalmente na Rádio Ufal e transcritas para o site da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a reitora Valéria Correia falou sobre a situação atual das Universidades no contexto de cortes orçamentários e ameaças à autonomia universitária. Acompanhe na Rádio Ufal via internet e leia aqui:

Lenilda Luna: Professora, muito obrigada por ter atendido o chamado da Rádio Ufal para fazer esse debate das questões da Universidade que são importantes extramuros, que têm uma inserção dentro da sociedade alagoana e da sociedade brasileira. Obrigada por sua presença!

Reitora: É muito importante ressaltar a inauguração e a permanência de um programa dessa natureza na nossa rádio, porque o momento histórico em que vivemos necessita dessa comunicação maior da Universidade e da sociedade que é o tema dessa série de programas que a gente inicia hoje. No contexto atual de várias tentativas de desqualificar a educação pública brasileira, de cortes de recursos, paralelos a esse processo; penso que abrir a conversa da universidade com a sociedade e estreitar essa relação, é de extrema importância.

Lenilda Luna: A gente começa por aí. Eu imagino que em todas as questões que a gente enfrenta na sociedade, todas as dificuldades,a gente precisa extrair também o aprendizado e os aspectos positivos. Eu queria que a senhora falasse um pouco sobre isso, porque eu acredito que um aspecto positivo de todo esse momento difícil que estamos vivendo na universidade é que se tem percebido tanto da comunidade universitária como da sociedade em geral, finalmente ou de forma mais enfática agora, levantar e olhar para a universidade, perceber que ela é sua. Entender que, se a Ufal, por exemplo, desaparece do contexto de Alagoas, não é só o estudante que vai perder, é a sociedade como um todo. A Ufal presta vários serviços… A senhora considera então que essas últimas manifestações que aconteceram a partir de maio, só pra lembrar, em 9 de maio nós tivemos uma assembleia aqui, para discutir a questão da defesa da universidade no Hall da Reitoria que surpreendeu até aos sindicatos e entidades estudantis que estavam organizando. A Assembleia não coube no auditório. Depois nós tivemos as manifestações sociais nos dias 15 e 30 de maio, com a pauta da defesa da educação. A senhora acredita que nesse momento difícil para a universidade, a sociedade finalmente está tomando conta dessa instituição?

Reitora: Acredito [Sim]. Acredito que o reconhecimento da importância das universidades públicas e em especial da nossa Ufal, pela sociedade, é um reconhecimento público e notório, especialmente porque na nossa realidade do estado de Alagoas, a Ufal é a maior Universidade pública e isso nos dá mais responsabilidade, pois nós existimos em todo o estado. Nós temos três Campi, o A.C Simões que fica em Maceió e é a sede. Com processo de interiorização e expansão temos o Campus de Arapiraca e o do Sertão, em Delmiro Gouveia. Mas agregamos várias unidades educacionais, além do ensino a distância que congrega outro tanto de municípios aqui de Alagoas. Então a Universidade existe para além dos muros e esse reconhecimento está posto a partir dessas mobilizações, de toda essa campanha positiva em torno da educação superior pública no país, revelando o pertencimento à universidade dos alagoanos e alagoanas ou de quem mora e já foi acolhido por esse estado. Um pertencimento recíproco, onde a universidade pertence à sociedade e a sociedade tem a sensação de pertencimento à universidade.

Então, esses laços profícuos, importantes, de solidariedade, que nascem a partir de uma crise nacional do ponto de vista, não das universidades, mas de tentativas de desqualificar a universidade pública brasileira e (des)financia-la ao mesmo tempo, sim, é um apelo forte, conforme você apontou no início, para essa solidariedade e esse reconhecimento público da nossa força no estado e do nosso potencial, não só em número de estudantes, mais de 30.000, número de professores e técnicos que é de 3.500; mas do efeito e do impacto das nossas pesquisas na sociedade e da nossa extensão, além dos serviços gratuitos. Vejam bem, nós temos o Hospital Universitário Professor Alberto Antunes, de média e alta complexidade, que atende a todo o estado. Nós temos outros serviços públicos e gratuitos também, na verdade, pagos pelo conjunto da sociedade, digo sempre. Ele é gratuito mas custa caro aos cofres públicos e à sociedade. Temos desde o escritório modelo que funciona aqui no Fórum, na universidade, com serviço gratuito para o entorno da instituição. As clínicas odontológicas que funcionam na Faculdade de Odontologia [Foufal], mais de 400 projetos de extensão espalhados em todo o estado com um impacto imensurável na vida do povo e da sociedade alagoana.

A Universidade pertence ao povo alagoano e o povo alagoano pertence à universidade e esse momento é de solidariedade, reciprocidade e de declaração e amor à Ufal. Temos assistido à várias gerações, são 58 anos de existência. A universidade tem uma caminhada longa. Iniciou com a fusão de seis cursos históricos e tradicionais que existiam antes e, a partir disso, nasce a Ufal em 1961 e atravessa um processo de ditadura e depois de redemocratização do país e de sua expansão. Numa época recente (a Ufal) mais que duplicou o número de estudantes com o processo de expansão e interiorização, de uma forma geral, das universidades públicas brasileiras. Então eu penso que de fato, se existe um aspecto positivo nesse momento, é esse reconhecimento social da importância das universidades públicas brasileiras para o desenvolvimento social, econômico e político do país e da defesa dos direitos sociais; a produção do conhecimento e a pluralidade de ideias que são próprias do espaço universitário e o processo de inclusão social com as cotas sociais e étnico-raciais que mudou o cenário da universidade. O perfil estudantil hoje é outro, aconteceu a inclusão social. A universidade pública é inclusiva. Então são muitos aspectos positivos e esse reconhecimento é muito importante nesse momento que estamos vivendo.

Lenilda Luna: Uma outra questão desses tempos é que existe uma corrente, algumas pessoas colocando inclusive nas redes sociais, que dentro da Universidade existe uma doutrinação. Mas o que nós estamos vendo agora é o embate forte de ideias, isso significa que existem várias ideias em confronto dentro da Universidade. Isso já, por si, desfaz esse conceito de doutrinação, porque esse seria o conceito de um pensamento único e hegemônico e não é o que estamos vendo. O que está cada vez mais evidente é o confronto de ideias na universidade que é positivo e faz com que as pessoas, inclusive, se preparem, estudem e analisem para defender as suas posições.

Reitora: Exatamente. Essa ideia de doutrinação vem muito da idade média onde a doutrina da Igreja, era a lei. A doutrinação sim, era o pensamento único, quando que era proibido o questionamento. Tinha a inquisição para quem questionasse os dogmas estabelecidos pela igreja. O sorriso ou questionamento eram considerados perigosos, como registrado naquele livro e no filme “O nome da rosa”  que coloca explicitamente o medo do questionamento ao que estava posto. Giordano Bruno foi para a fogueira e muitos outros também, por questionarem o que estava posto à sua época. Isso é doutrinação. Nos tempos modernos, desde o Renascimento, Iluminismo e do estado moderno, temos a razão crítica, pois ela é motora do próprio conhecimento.

Dizer que a universidade é um espaço de doutrinação e de pensamento único, não condiz com a realidade e é exatamente isso que você [Lenilda], coloca. A universidade é um espaço plural e as idéias afloram. É próprio da Universidade e do conhecimento que nasce do questionamento sobre o que está posto. Conserva-se algumas questões e avança-se para a síntese e a antítese. O processo de conhecimento é longo e não acaba, nasce dos questionamentos e avança a partir de novas evidências. O espaço do conhecimento, que é da universidade, não é feito de dogmas, como querem colocar. Dizem que é uma espaço ideologizado e que existe uma conspiração do mal dentro das universidades. Não é isso. A universidade é o espaço da liberdade, pluralidade e da livre expressão; da liberdade de cátedra e didática que, inclusive, a gente conseguiu conquistar na própria Constituição. Nos artigos 206 e 207, essas liberdades estão asseguradas no espaço da educação superior pública. Então, pasmem, precisamos sempre nos reportar a esses artigos e agora reafirmar essa liberdade, porque existe sim uma tentativa organizada de cercear essa liberdade.

Tivemos uma decisão muito importante que eu gostaria de mencionar que foi no dia 31 de outubro do ano passado, diante do processo eleitoral, quando tivemos apreensão de material e entrada da polícia nas universidades, não autorizadas pelos reitores e reitoras. Houve uma mobilização do ponto de vista jurídico e o Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, pela defesa da autonomia universitária e pela liberdade de cátedra e de expressão; resgatando o texto constitucional. Eu penso que essa luta ainda está na atualidade, frente aos últimos acontecimentos nas mobilizações mencionadas, onde foi incentivada a perseguição, a delação do que estava acontecendo, uma possível punição à liberdade de expressão. A universidade é um marco civilizatório e tem princípios. Ela construiu esse marco que temos hoje e é nesse espaço que a resistência existe. É um marco civilizatório incontornável, não tem como voltarmos atrás; à barbárie, ao estado de exceção, à censura. Enfim, a coibir essa liberdade de expressão.

Inclusive, nós propusemos ao Conselho Universitário a posição de preservar essa liberdade na Ufal. Uma liberdade de expressão e de cátedra, desde que não agrida aos direitos humanos, e entra nesse aspecto qualquer expressão de racismo, LGBTfobia ou qualquer outra violação aos direitos humanos. Esse é o marco civilizatório que defendemos: da liberdade de expressão. Porque isso é muito confuso, as pessoas acabam confundindo liberdade de expressão com liberdade de cometer crimes por injúria racial, homofobia, perseguição a religiões, ao diferente. O que está posto na sociedade atual e é uma perspectiva mundial. Eu tenho alguns artigos nesse sentido de crítica a um pensamento binário, mais ou menos o que se colocou na campanha do Trump, e o que ele significa hoje, e todo o pensamento que consolidou a sua ascensão, e de outros presidentes de uma ala bastante conservadora. É o neoconservadorismo nascendo a partir de um pensamento binário onde a complexidade da explicação da realidade não se dá, ou se é profano ou se é sagrado. “Heteronormativo é o correto”, então qualquer diferença sobre essa identidade e orientação sexual é avessa a heteroidentificação. Hétero é o modelo formal. Esse pensamento binário, não compreende e não explica o real e a complexidade de pensamento que existe para explicação. Não podemos, por exemplo, tirar Filosofia e Sociologia, o pensamento sobre quem é o homem e a mulher, a existência do ser social, do currículo.

Todas as áreas de conhecimento precisam compreender o que é a sociedade e a humanidade. Então é uma universidade instrumental? A serviço de que? Esse pensamento binário é anti-intelectual, anti-conhecimento é anti entender a complexidade do real, são explicações simples. A partir daí vem o que o Lincoln Secco tem chamado de técnicas manipulatórias, que induz a uma manipulação do que é fácil explicar e ele ainda aponta uma teoria conspiratória em que o centro dessa teoria, está nas universidades públicas brasileiras. Veja, Lenilda e ouvintes, não existe qualquer justificativa plausível para dizer que existe uma teoria conspiratória no espaço da Universidade. O pensamento é plural, as teorias são transversais, explicitadas e confrontadas em sala de aula. Deve haver essa liberdade de confronto de teorias e de explicação sobre o real, mas de forma complexa e não simplista, e nem tampouco de um pensamento binário. Alexandres Gefri tem um texto em que explica a ideologia do Steve Bannon que foi e tem sido a extrema direita contemporânea. Bannon tem sido um estrategista da extrema direita, não só nos Estados Unidos, mas agora também na Europa; se mostrando alternativo, mas a síntese é do pensamento binário, da espetacularização, da forma manipulatória das mídias.

Estamos na época das fakenews, da manipulação da realidade. Nós vimos que isso minou todo o processo eleitoral que vivenciamos há pouco tempo no país e mina os meios de como as pessoas têm acesso às informações de uma forma mais fundamentada e verdadeira. São técnicas manipulatórias do real, para encobri-lo.Tivemos um exemplo recente quando o Ministro da Educação foi a público dizer que são as universidades privadas que produzem a ciência no país. Isso é não só uma manipulação do real como uma falsa realidade. É uma fakenews muito pesada e a Andifes, com dados de pesquisas sistematizadas pela própria Capes, que é um órgão ligado ao MEC, informa que são nas universidades públicas brasileiras onde se produz 95% da ciência no país. São inverdades, colocadas ao público como verdades, com o propósito de desqualificar a universidade pública brasileira. É um anticonhecimento, anti-intelectualismo e eu diria, de uma forma muito vulgar e rasteira, e que a gente precisa enfrentar de uma forma clara, decisiva e com dados da realidade. Com um pensamento crítico sobre o real, indo à essência do que se coloca e não ficando na aparência manipulatória. As universidades têm essa obrigação de decifrar o real, de mostrar o que é real com dados a realidade, dar elementos do ponto de vista teórico, do que está posto nessa realidade. O pensamento no espaço da universidade é plural. A diversidade de pensamento é própria do espaço da universidade. 

Lenilda Luna: Então, nesse momento, o importante para enfrentar o obscurantismo é justamente iluminar, dialogar, abrir janelas e portas. E isso a Ufal tem feito. Nós temos cientistas de todas as áreas: das humanas, exatas e saúde, presentes na sociedade alagoana, dialogando. É isso que tem que ser fortalecido, essa presença da Universidade Federal de Alagoas. Quebrar aquele esteriótipo, que não existe há muito tempo, de cientista trancado em seu laboratório. Na verdade, os pesquisadores da Ufal já estão em contato diário com a sociedade alagoana. 

Reitora: Exatamente. Esse é o caminho que se observa já naturalmente. Quando estamos tomando café da manhã e assistimos qualquer jornal local, observamos diariamente, sempre tem algum professor, técnico ou estudante da universidade; seja em qualquer área do conhecimento; seja especialmente, e isso eu tenho muito orgulho de dizer, no aspecto da cultura e da arte que é pública e gratuita. A Ufal sempre está, ou nas páginas, ou na televisão, diariamente. Então, a universidade se apresenta à sociedade, contribuindo para o seu desenvolvimento social, econômico, artístico, cultural; é a presença viva da universidade. Todos os dias eu tenho o prazer de ver e observar, alguma pesquisa nossa sendo mostrada ou alguma atividade da universidade, seja no aspecto acadêmico ou extensionista, q ou do aspecto científico. Nesse leque, a universidade está presente na sociedade com a presença cada vez maior.

Começamos uma campanha, com um vídeo, há um mês, mais ou menos, para mostrar o que seria a sociedade alagoana e o estado de Alagoas, sem a universidade. Esse apelo é grandioso e tem tido adesão porque universidade e povo alagoano têm uma identidade e essa identidade é singular. A universidade é um espaço em que todo alagoano, alagoana, e quem mora aqui, tem orgulho. De fato, a nossa presença se faz através dos mais de 400 grupos de pesquisa, com produção nacional e internacional. A nossa universidade é grande e não só está no estado, como no país, desenvolvendo pesquisas de ponta que contribui com o desenvolvimento do país e é reconhecida também em eventos internacionais. Além de sediar eventos, os nossos pesquisadores também estão presentes em atividades nacionais e internacionais. Essa presença e articulação é importante.

Eu gostaria de destacar duas questões que potencializam esses laços: são projetos que estamos desenvolvendo, enquanto gestão, com esse olhar para a sociedade: um Centro de Referência Socioambiental, para ocupar socialmente a área da universidade, para desenvolver hortas urbanas, farmácias vivas, etc.. Há um grupo de professores trabalhando nesse projeto. Já fizemos o lançamento desse espaço, mas queremos fortalecê-lo também aqui e com o entorno da universidade.

Outra forma da universidade se aproximar da sociedade é o Fórum Popular Universitário que acontecerá entre 4 e 6 de julho. Os movimentos sociais vão dizer para a universidade quais são suas demandas, do ponto de vista da extensão, da pesquisa. Como nós podemos somar. Nossos pesquisadores vão escutar e vão fortalecer os laços que já possuem com a sociedade. Estamos construindo esse fórum e vamos institucionalizar esse processo de fortalecimento. Essas são iniciativas que eu gostaria de destacar para além das demais que são diárias, mas essas dos ponto de vista institucional que priorizamos esse ano.

Lenilda Luna: Reitora, em nome da equipe da Ascom, gostaria de agradecer a sua presença na primeira edição do programa “Ufal e Sociedade”.

Reitora: Eu agradeço e parabenizo a iniciativa da Ascom. Quero convocar a sociedade alagoana para abraçar cada vez mais a universidade. Também aos parlamentares, tanto em nível federal,como estadual, para defendermos juntos os recursos para a universidade pública brasileira de uma forma geral e para a Universidade Federal de Alagoas. Para que a instituição continue existindo com todo o impacto positivo. Nesse sentido, nossa intervenção, do ponto de vista acadêmico, se fortalece com essa aproximação da sociedade e a universidade. Vamos continuar abraçando solidariamente a universidade pública brasileira, porque ela só tem a contribuir com o desenvolvimento. Um país que se quer soberano, precisa de pesquisa e de conhecimento, e de intelectuais a serviço da sociedade.

Lenilda Luna: É isso. A Ufal somos todos nós. Obrigada pela audiência. Voltaremos com os próximos programas. Você pode sugerir pautas pelo email: pautas@ascom.ufal.br. Até o próximo “Ufal e Sociedade”.

Ouça a entrevista aqui