Com a posse da palavra, Brisa Paim

A autora de a morte de paula d. e os lances de sua relação com a escrita e com a vida

27/07/2010 10h39 - Atualizado em 13/08/2014 às 02h01

Carla Castellotti - da Gazeta de Alagoas

Em entrevista concedida por e-mail à Gazeta, a escritora revê seu percurso literário e fala de seu processo criativo, além de refletir sobre suas diferentes influências, sejam elas literárias, ou musicais. Leia a seguir.

GAZETA - Como jovem autora, de que forma se deu seu interesse por literatura e quando você começou a escrever com pretensões literárias?

BRISA PAIM - Meu interesse por literatura começou quando criança, pois me lembro de estar desde cedo intrigada pelos livros dos meus pais. Lia Garcia Márquez, Patrick Süskind, o que havia por lá, além dos livros infanto-juvenis que me davam. Comecei a escrever paralelamente, como consequência natural do descobrimento daquelas estantes da infância. Claro que não era nada sério, mas coisa de criança. Nem por isso deixava de ter pretensões literárias, ainda que um tanto cósmicas, porque eu queria me comunicar com aquelas histórias de alguma forma. Queria fazer parte daquilo, queria poder aquilo, era como uma coisa meio mística, meio mágica, algo que escapava por completo do meu entendimento. A escrita se tornou, então, esse exercício de desconhecer. Por mais que hoje a natureza da busca seja muito diferente, que os objetivos sejam outros, nunca deixou de ser uma procura.

Não se nota um traço de territorialidade na sua literatura, já que você nasceu e cresceu na Bahia, morou em Manaus e em Maceió e, atualmente, vive em Coimbra, Portugal. Pelo fato de seu livro ter sido escrito e lançado em Alagoas, você diria ser possível enxergar alguma referência local nele?

O que posso dizer é que o fato de eu ter morado em vários lugares não garante a exclusão dos ditos "traços de territorialidade". Encontrar esses e outros traços é tarefa privativa do leitor. [Ferreira] Gullar levou a São Luís dele para Buenos Aires quando, exilado, escreveu o Poema Sujo. Não necessariamente a São Luís cidade, mas a São Luís memória: "O homem está na cidade/ como uma coisa está na outra/ E a cidade está no homem/ que está em outra cidade”. Portanto, possível é. É possível encontrar referências locais tanto quanto quaisquer outras referências. O percurso da leitura é indeterminado e escapa absolutamente do meu controle. Não cabe a mim, como autora, ditar as regras do jogo; só tentar forjar um campo para que se jogue.

Você acha que os editais, que passaram a contemplar a obra de novos autores, permitem que se elimine um provável ‘intermédio’ no processo de publicação?

Bem, enquanto houver concursos, sobretudo os públicos, existe ao menos a garantia formal de que todos os que se dispuserem a concorrer o estarão fazendo em pé de igualdade. Esses concursos facilitam o processo para novos autores (novos no sentido de não publicados) justamente porque publicar nessas condições, por uma 'editora comercial, é hoje bem difícil. Existe uma demanda que é a demanda do mercado. Por conta dela, alguns autores são enquadrados em certos nichos e absorvidos, outros são categoricamente rejeitados. Independentemente do livro, o próprio nome do autor pode ser destacado e transformado em marca. A literatura em si, a sua densidade artística, está cada vez menos em jogo. Passou a ser secundária. Os concursos públicos, pelo menos objetivamente, não se guiam por essa lógica invertida, por serem abertos à participação de todos e por serem desenhados para uma filtragem impessoal dos resultados. Ou seja, o que resta, no final, se o concurso for limpo, é uma parcialidade fundada no trabalho, na qualidade do trabalho, que, em tese, só nesses limites é que poderá ser questionada.

Observando seu caso - seu livro foi lançado por meio de um edital e a inclusão dele num concurso como o Prêmio São Paulo de Literatura também se deu nesses moldes -, como você avalia o julgamento feito por 'comissões'? Você poderia nos falar sobre o seu processo em particular?

 Bem, com o Prêmio LEGO, promovido pela Faculdade de Letras da Ufal, a morte de paula d. viu a chance de ser publicado. É um concurso que já deu e vem dando voz a bons autores em Alagoas, tirando os textos das familiares gavetas. Tornar um texto público, seja de que forma for, é desistir de viver a literatura apenas como uma experiência solitária e autocentrada e abrir-se à alteridade. O [prêmio] LEGO de 2007 tinha quatro categorias e era reservado a obras inéditas de autores locais, estreantes ou não. Eu inscrevi-me na categoria romance com o paula d., que tinha acabado de ser finalizado. O livro foi publicado pela Edufal no ano de 2009. Já o Prêmio São Paulo é composto por duas categorias, uma reservada aos romancistas estreantes (com o primeiro livro publicado no ano anterior) e outra reservada aos não-estreantes. O paula d. se enquadrava na primeira categoria e, portanto, fiz a inscrição pelos Correios.

E como foi sua reação ao saber que a morte de paula d. estava entre os finalistas de um concurso de importância nacional?

No final de maio, soube que o livro estava como finalista. Foi uma grata surpresa, pelo fato dele ter sido editado por uma editora universitária e fora do mainstream. Ambos os concursos foram públicos e fizeram a seleção com base no julgamento de um grupo de pessoas ligadas à literatura. No Prêmio LEGO foram duas, ambas de fora do Estado, e, no Prêmio São Paulo, foram dez no júri inicial. Essas dez pessoas elaboraram por votação a lista com os dez finalistas para cada categoria. Agora, a deliberação será feita, também por votação, por um júri final composto por cinco especialistas, que assim chegarão aos dois vencedores. Acho que essas comissões têm a vantagem de descentralizar os julgamentos e de permitir a diversidade de opiniões. Além de, é claro, possibilitarem uma opinião final formada com base num consenso.

Diante da indicação para o Prêmio São Paulo de Literatura, como você enxerga a possibilidade de ser premiada? É a chance de garantir estabilidade financeira para criar e/ou até mesmo ter sua literatura divulgada de uma maneira mais ampla?

Sinceramente, não penso nessa indicação em termos financeiros. Acho até sem sentido pensar por aí, até tendo em vista a natureza desse concurso, que envolve valores que vão muito além dos monetários. Prêmio para novos autores no mundo de hoje é a publicação, via de difícil acesso. No caso do Prêmio São Paulo, é o reconhecimento de que o que se escreveu vale de fato alguma coisa em termos de qualidade e, por isso, merece a atenção daqueles que efetivamente buscam a literatura. Além disso, nunca encarei a escrita como uma questão financeira, ou escreveria livros conforme a moda e atendendo a esse critério, pois são muitos os que assim fazem e têm a sua fatia de mercado garantida. A minha recompensa está sendo a procura pelo paula d. e o feedback dos leitores. Já por conta da indicação o livro está circulando melhor, e e isso que me interessa.

Entre os indicados na categoria de autor estreante o curioso predomínio de mulheres como finalistas quer dizer alguma coisa para você? Seria possível falar em uma 'literatura feminina'?

Acho significativo que sejamos oito, dentre dez finalistas. Contudo, acho igualmente significativo que, na categoria reservada aos não estreantes, todos os indicados sejam homens: mostra que as mulheres ainda estão começando a alcançar os espaços públicos - nos quais a arte se insere. Não gosto da expressão "literatura feminina". Primeiro, porque faz pensar que todas as mulheres que escrevem se conectam de antemão em suas escolhas estéticas pelo simples fato de serem mulheres, como se todas seguissem um estilo parecido, só se interessassem pelos mesmos assuntos ou algo assim, o que me parece um reducionismo preguiçoso e uma generalização absurda e perigosa. Segundo, porque traz embutida uma dose considerável de sexismo, como se as escritoras, igualmente por serem mulheres, se inserissem já imediatamente numa espécie menor de um grande gênero então chamado de literatura, cujo domínio estaria reservado aos homens. Ninguém fala em 'literatura masculina" porque já se considera a mulher um espaço setorizado e caricato dentro de um universo geral masculino. Como se a literatura fosse naturalmente masculina e apenas excepcionalmente (e subsidiariamente) feminina: à mulher, a particularidade; ao homem, a universalidade. Não entendo por que, para além de uma lógica machista, tenha de haver uma sobreposição, nesse plano categorial, de uma questão de sexo à própria literatura. Há quem tente dizer que é só mais um rótulo inventado pela crítica, mais um ao lado de tantos outros, e eu realmente acredito que seja, contudo, no sentido de que se tem inventado vários rótulos em função de questões de gênero e identitárias (literatura feminina, gay, negra etc) para demarcar bem demarcado certos espaços.