Marília e Euzébio Goulart são a própria história da Universidade

O amor do casal gerou frutos na ciência e na família
Por Manuella Soares - jornalista
11/06/2021 20h06 - Atualizado em 14/06/2021 às 12h47

Sabe aquele casal que transmite boas energias? Patrimônios da Ufal, Marília e Euzébio Goulart vibram em alguma sintonia quântica inexplicável! Por trás da barba séria, é fácil enxergar a leveza de Euzébio. E poucos devem ter visto a Marília sem um sorriso largo no rosto. A gentileza do casal superou a dor que estão passando com a perda do pai de Marília, o engenheiro de túneis Geraldo Fonseca, e mesmo num momento de luto topou participar desta matéria para falar sobre amor.

Porque foi o amor que os motivou a construir uma história na Ufal. Em meados da década de 70 eles chegaram de Minas Gerais para abraçar um projeto do zero. “O professor Roberto Alves de Lima foi um dos primeiros doutores contratados pela Ufal e tinha o sério propósito de criar a pesquisa científica, justamente na área de Química de Produtos Naturais. Euzébio seria seu parceiro nesta empreitada quase utópica. Seriam desbravadores em um Estado com vocação química, com cana-de-açúcar, usinas de açúcar e álcool, mas, sem qualquer expressão científica, com histórico cruel de coronelismo e sem classe média atuante”, lembrou Marília, que se juntou ao grupo logo em seguida. 

Para esse início difícil eles apostaram na união. Mais uma vez o amor os moveu para buscar um lugar no futuro. A visão precisava ser além do que os olhos alcançavam. “Vivenciávamos o isolamento científico, a ausência de bibliotecas, de livros-textos, de seminários, de discussões e de ambiente propício ao desenvolvimento científico-tecnológico, além da dificuldade de acesso aos periódicos científicos”, descreveu Marília enaltecendo que a criação dos periódicos da Capes fez total diferença para o que planejavam fazer na Ufal:

“Criou-se uma ponte sobre os múltiplos Brasis, em CT&I [Ciência, Tecnologia e Inovação], diminuindo diferenças regionais de forma marcante e inigualável. O maior desafio foi criar as condições de trabalho onde não tínhamos nada além do espaço físico”. Euzébio completa: “A Ufal era pequena, desacreditada, precária. A gente pôde ocupar aquele espaço físico e seguir. A luta principal foi criar uma estrutura de pesquisa, com equipamentos atualizados e uma boa biblioteca. Na época não existia internet, então a gente tinha que ter o livro, para ler e informar”.

Mas não é clichê dizer que sonho sonhado junto abre portas, cria oportunidades e faz-se real. “Com persistência, dedicação, crença nas próprias capacidades, colaboração multidisciplinar, planejamento e apoio institucional, junto a todos os colegas - antigos e novos, foi possível criar um Instituto de Química e Biotecnologia sólido, atuante, sempre em crescimento, e do qual nos orgulhamos”, disse Marília.

Trabalhos são referências

O pioneirismo incentivou a qualificação. E seguiram juntos. Eles fizeram doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-doutorado na Europa. Os longos anos de estudos renderam trabalhos reconhecidos, premiados e referências para muitas outras atividades.

Euzébio, que atualmente é professor do Campus de Engenharias e Ciência Agrárias (Ceca), estuda síntese, aplicação e formulação de feromônios, química de produtos naturais vegetais, realiza bioensaio moluscicida, contra Biomphalaria glabrata, larvicidas, e é envolvido no desenvolvimento de uma metodologia para controle do Aedes aegypti, o mosquito da dengue. Além de muitos prêmios pela Ufal e Fapeal, ele recebeu o Prêmio Nacional em Ecologia Química Professor José Tércio Barbosa Ferreira, pela Sociedade Brasileira de Ecologia Química. Desde o ano passado Euzébio se tornou membro titular da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e é autor de mais de 230 artigos publicados.  

A bela carreira não ofuscou o brilhantismo da esposa, vencedora do Prêmio Jovem Cientista, pelo CNPq; do Prêmio Marie Curie, concedido pela Sociedade Brasileira de Química, e do mais recente Prêmio Jovens Inventores, dentre os mais de 40 que já ganhou. Euzébio sempre foi um incentivador que aplaudia de pé cada conquista de Marília. “Um indivíduo não pode tolher o outro, e foi isso que a gente sempre usou e eu faço questão de preservar: não dificultar a vida do outro. Foi isso que a gente aprendeu junto”.

Os méritos são incontáveis. Marília foi a primeira mulher com atuação em universidade nordestina na área de Química a ser empossada na Academia Brasileira de Ciências, em 2015. Ela soma quase 17 mil citações em diversas plataformas científicas pelos trabalhos publicados e segue ativa.

“Trabalhamos em áreas correlatas e nos completamos. É um trabalho ininterrupto. Há dificuldades, mas, tem sido muito positivo. O importante é que cada um conquistou seu próprio espaço e reconhecimento”, comentou.

Família Ufal

Entre um pós-doutorado e outro Marília e Euzébio transitavam pela Inglaterra e Alemanha, se aprofundavam na eletroquímica e na química orgânica, estudavam, publicavam e aumentavam a família.  E na volta para o Brasil, onde mais seria o melhor lugar para criar os filhos de um casal de professores?

“Quando éramos pequenos nosso local de passeio no fim de semana era Ufal! Aos sábados e domingos íamos para a Ufal e, lá, eu e meu irmão arrumávamos coisas para brincar. Sempre foi um quintal de casa. Ficávamos nas salas escrevendo nos quadros ou andando no departamento de Química. Era onde jogávamos futebol, onde estudávamos para as provas com a ajuda dos alunos dos meus pais. Onde conhecíamos todo mundo!”, lembrou Henrique, o mais velho dos dois filhos.

As memórias afetivas dele e do irmão nasceram ali, naquele mundo que não remetia à ciência, era apenas diversão e descobertas. “As frustrações minha e de todas as crianças que iam ao laboratório é que a sala era cheia de caixa de bombom e chocolate! Ficávamos doidos para comer! Mas, na realidade, as caixas eram cheias de extratos”, brincou, sobre a impossibilidade de pegar escondido um pouco do material de pesquisa.

Crescer nesse ambiente despertou algo além da curiosidade. Os pais viviam mergulhados nas investigações científicas e fizeram brotar mais um amor para o filho. “Esse amor pela pesquisa e o trabalho incessante fizeram com que eu também me apaixonasse pela Universidade. Hoje tenho os dois como um espelho”, comentou Henrique, também professor da Ufal desde 2014, no mesmo instituto que os pais ajudaram a construir. E a história se repete, como um deja vu: “Algumas vezes meu filho vem à universidade e também fica frustrado pelas caixas de chocolate!”

Henrique não herdou só o bom humor de Marília e Euzébio. O professor seguiu os mesmos passos e se tornou um profissional digno de citação nos trabalhos dos pais. “Temos o maior orgulho de tê-lo como colega professor e cientista. A entrada dele nos uniu e enriqueceu nosso convívio, pelo aporte de conhecimentos e habilidades novas. Devemos ressaltar que ele mantém sua independência intelectual, cientifica e motivacional, como deve ser”, enfatizou Marília, orgulhosa de ter encaminhado o filho para voar sozinho.

Cada fase vivida e vencida

O legado valoroso em quase cinco décadas de dedicação à Ufal e à ciência foi edificado com muitos sacrifícios, renúncias e entregas. O caminho foi todo acompanhado pelos filhos, que algumas vezes sentiram a ausência, mas, de perto, se alegraram junto.

“Vimos a mudança toda! A dificuldade de falar com eles porque só tinha uma linha telefônica no departamento, depois, com a instalação da internet, a pós-graduação, os workshops com vários estrangeiros, vários professores que iam almoçar lá em casa... Vi as frustrações com algumas coisas que não davam certo e as várias alegrias que tiveram, sejam com os filhos postiços quando terminavam [o curso] ou quando um paper era publicado!”, resgatou Henrique.

E aquela Ufal desacreditada foi ganhando ânimo com os projetos que Euzébio ajudou a elaborar, os incentivos financeiros que conseguiu captar e o crescimento da pós-graduação que Marília apoiou, a exemplo do Programa de Doutorado em Biotecnologia – Rede Nordeste de Biotecnologia (Renorbio), que reúne as nove universidades federais do Nordeste e mais a Universidade Federal do Espírito Santo.

 A pesquisa produzida na Rede tem aplicações em áreas como novas tecnologias para o tratamento de doenças negligenciadas, pesquisa para controle da Zika vírus, da leishmaniose e do coronavírus. Também atua com inovação tecnológica para a agropecuária, indústria farmacêutica, perícia forense, entre outros campos de aplicação.

“Só há sentido na formação de recursos humanos, se deixamos herança humana, cidadãos e cientistas melhores e grupos de pesquisa capazes de continuar o avanço científico. Muitos dos nossos pós-doutores e alunos de doutorado foram responsáveis pela adição de linhas de pesquisa ao nosso laboratório. Passaram, então, de alunos a colegas de pesquisa, em uma dinâmica extremamente saudável e desejável”, destacou Marília.

É fácil entender esse pensamento acolhedor vindo de uma cientista humanizada, de sorriso aberto, que funde a família à Ufal. O professor Henrique resume: “É uma relação de entrega!”. E Euzébio concorda, sempre com a visão nas boas perspectivas: “Esse trabalho ainda continua, não deve nunca parar. Isso vai perdurar, na formação das pessoas”.

Parecem frases de quem já tem a missão cumprida? Não para esse casal movido pelo amor às pesquisas. Vovó Marília e o vovô Euzébio curtem os quatro netos e os livros. Nas horas vagas o patriarca ainda nutre a paixão pelo futebol praticando ou como expectador do mais novo jogador da família.

“Eu mantenho esse amor muito vivo. Vejo meu neto jogar, às vezes levo ele pra treinar, e isso me dá um alento. Já falei que vamos ter que jogar juntos, ele está treinando pra isso. Eu já treinado!”, brinca.

A fase é mais um recomeço. Mas quem duvida da disposição desse casal? “Quando olhamos para trás, ao longo desses quase 50 anos, podemos parafrasear Pablo Neruda ‘confesso que vivi’, no plural”.