Reportagem sobre autoafirmação, amor e liberdade é tema de TCC

O trabalho destaca a história de celebração de vida da mulher transexual alagoana Paloma Marques como resgate para memória histórica e cultural
Por Diana Monteiro – jornalista
14/10/2022 15h01 - Atualizado em 14/10/2022 às 15h01

Dados apontam que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo e essa realidade de violência praticada contra a comunidade LGBTQI + vem cada vez mais ocupando espaços de debate na sociedade. O resgate de uma história de vida, permeada por muitos desafios, mas também com realidade de celebração, foi o foco do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do recém - graduado Jamerson dos Santos Soares, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

 O TCC, que resultou em uma reportagem em jornalismo literário, foi apresentado no dia 22 de setembro, e teve como título O voo de Paloma: retrato de Paloma Marques, mulher transexual alagoana, carnavalesca e ícone dos anos 90 com trajetória na arte e cultura locais. Paloma tem 60 anos, nasceu no município de São Miguel dos Milagres e morou por mais de 20 anos em Porto de Pedras, litoral norte de Alagoas.  Talentosa, declara-se mulher trans e segue atuante nas suas múltiplas habilidades para o mundo das artes.

Paloma é cantora, dançarina, costureira, estilista, decoradora de pousadas e foi da equipe da alagoana Vera Arruda, já falecida. Trabalhou também como assistente de palco no programa de auditório Pell Marques, exibido na antiga TV Alagoas. Mas, nesse mundo da arte, com talento reconhecido, há muitos desafios em sua história de vida. Em sua trajetória marcante de vida foi também circense, uma escolha para conquistar o mínimo de liberdade. Por sofrer  muito com os abusos,  violências psicológicas e físicas em seu  ambiente familiar e no convívio social, encontrou como única saída  fugir com a trupe de um circo que chegou na cidade em que morava.  

"A reportagem de Jamerson é importante para a comunidade LGBTQIA+ porque coloca no centro da história, Paloma, uma mulher transexual alagoana que chega aos 60 anos celebrando a vida. Isso tem que se tornar a regra, não a exceção. Somos um país que 'acostumou' a ver pessoas da comunidade LGBTQIA+ serem assassinadas ou sofrerem todo tipo de violência. O voo de Paloma traz uma nova história e precisamos, cada vez mais, da construção de narrativas sobre pessoas LGBTQIA+ que não sejam de violência. Nisso, o jornalismo e a arte, a exemplo do cinema, são fundamentais", destaca a professora Janaya Ávila, orientadora do trabalho.

Resgate

Sobre a escolha do tema para desenvolver o trabalho como conclusão da graduação em Jornalismo, profissão abraçada com amor e dedicação, onde já atua, Jamerson diz que foi a partir de uma foto feita pelo fotógrafo alagoano Celso Brandão.

"Eu me interessei em realizar o trabalho depois que vi o retrato de Paloma em 2019, em uma rede social chamada Pinterest. A foto tinha a seguinte legenda: 'Paloma, travesti, 1993. Por Celso Brandão'. A partir disso, algo me inquietou para saber quem era Paloma por trás do retrato, quem era a pessoa da foto, o que ela fazia, no que trabalhava, se ainda estava viva, ouvir suas memórias e trajetória, como também me interessei em saber sobre a história do retrato e em quais circunstâncias ele foi feito”.

Ao destacar que a reportagem feita é sobre autoafirmação, amor e liberdade, Jamerson disse que o principal objetivo foi descobrir quem era a pessoa do retrato e sobre sua trajetória, como também, como se deu o encontro dos acasos para composição da foto. “O meu interesse em abordar a temática é porque há um apagamento das histórias e existências de pessoas trans em Alagoas e no Brasil, e eu queria que essa história do meu TCC fosse contada para contribuir com a memória alagoana e com a comunidade LGBTQIA+ no Estado”.

Na dura realidade existente onde a violência acomete, rotineiramente, esse universo, o pesquisador enfatiza que a reportagem também é uma espécie de denúncia em prol dessa comunidade, assim como, despertar nas pessoas do quanto é necessário contar histórias dessas  existências. “No país que mata mais travestis e transexuais no mundo, onde há registro de que muitas travestis e transexuais não chegam aos 35 anos de idade e são assassinadas ou violentadas, chegar aos 60 anos de vida, a idade que Paloma está,  é pura resistência e motivo de alegria. Por isso, é importante que essas vidas sejam lembradas e registradas na história”, afirma Soares.

Jornalismo literário

Para a realização da reportagem, etapas contemplaram base teórica e convivência com Paloma, em sua rotina de vida. Jamerson Soares diz que o TCC teve como inspiração teórica os trabalhos dos jornalistas Narciso Kalili, Eiane Brum, Fabiana Moraes, Chico Felitti, Caco Barcelos, João do Rio, Jorge Ijuim, dentre outros. Trabalhos da psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, também uma mulher trans, serviram para a base teórica para a elaboração da reportagem.

As informações sobre jornalismo literário, Soares diz que vem buscando mais informações sobre esse assunto desde 2017, quando conheceu as reportagens de Eliane Brum. “Os trabalhos dessa jornalista têm um teor mais poético e delicado, mesclando informações e dados à subjetividade jornalística. Ou seja, a soma da técnica do próprio jornalismo com a emoção da literatura”, declara.

Ele enfatiza que acredita ser possível contar histórias além de um formato de uma notícia (curta, direta e sem detalhamento da existência do outro).  Diz que há texturas, sons, gestos, gostos e cheiros dentro da entrevista que podem ser essenciais para uma reportagem.

"É por meio desse detalhamento e intimidade com o outro, dessa imersão, que algo intenso e mágico acontece: o leitor também se torna um terceiro personagem da reportagem devido ao mergulho que ele também dá naquela realidade da matéria. A realidade nunca vai ser descrita fielmente". E aproveita para acrescentar: “O que o jornalista faz, é utilizar do seu repertório sociocultural, tentar entender o fato e o local onde a vida daquele entrevistado habita e chegar à verossimilhança dessa realidade por meio da memória. O jornalista consegue pegar um retalho da realidade e, somado a dados e informações verídicas, alcança o crível, o verossímil, proporcionando uma identificação por parte do leitor”.

O jornalismo literário, segundo o jornalista, professor  e escritor brasileiro Felipe Pena, é um terceiro gênero produto de outros dois (jornalismo e literatura), e sua essência é musical, ou seja, a realidade de fato é muito mais profunda e segue seu próprio ritmo, que será moldado ao ritmo do jornalista/escritor.

Soares enfatiza que desde criança gosta de escrever poemas e textos de outros gêneros e que veio daí uma  das motivações para que sentisse fazer  algo com a poeticidade, a realidade mágica, e como isso poderia contribuir na escrita da reportagem. “Enfim, a história do retrato de Paloma e a história da própria Paloma, por ser dramática e intensa, teve que ser contada de uma forma mais especial, mais essencial, o que contribui para a legitimação de sua existência e registro memorialístico”.

 Êxito

A positividade do trabalho como reportagem em jornalismo literário, segundo a orientadora Janayna Ávila, teve resultado exitoso.  Para isso, Jamerson precisou estabelecer momentos de convivência com Paloma, inserindo-se no cotidiano dela, para contar melhor e de forma honesta essa história. “Ele só obteve um resultado tão positivo porque estabeleceu essa convivência. É também um registro importante para a galeria de personalidades de Alagoas porque Paloma tem uma história na moda, trabalhou com a estilista alagoana Vera Arruda. A contribuição dela merece registro”, diz  ao enfatizar a temática abordada em conexão com o jornalismo literário e  com a  memória alagoana.

Janayna reforça a importância da reportagem destacando a delicadeza do trabalho de Jamerson em abordar o tema, em entrar na intimidade de Paloma e, com muito cuidado e seriedade, construir o texto que ele construiu:  “Isso é raro porque é muito tênue a linha que separa um bom trabalho em jornalismo literário de um material cheio de clichês, de adjetivações. É bem mais difícil e, portanto desafiador, fazer jornalismo literário. Jamerson conseguiu, ao mesmo tempo, trazer um tema rico, original, importante, e construir um texto convidativo, que dá gosto de ler”, destaca. 

Etapas

A pesquisa começou em 2019, segundo Jamerson, a passos lentos porque na correria de vida ele tinha que conciliar estágios e faculdade. Pesquisas em livros da Biblioteca Pública do Estado, assim como procura na internet com a intenção de saber alguma informação sobre Paloma, fizeram parte da dinâmica do trabalho realizado em etapas. Só em 2021, por meio da rede social Facebook conseguiu o contato de Paloma dando início a primeira etapa da pesquisa.

Consistiu da primeira etapa do trabalho realização de fichamentos sobre diversos livros, artigos, publicações e de documentários que tivessem relação com a temática. Também,  realizou entrevistas com personagens secundários, que são as pessoas que participam da reportagem. A exemplo do autor da foto de Paloma, Celso Brandão, e Marcelo Nascimento, um dos fundadores do movimento LGBT em Alagoas.  Natasha Wonderful, travesti que mora há anos em Alagoas, e que ainda hoje luta para sobreviver, também foi entrevistada, dentre outras. “Primeiro eu me preparei de forma teórica e epistemológica para depois começar a parte prática”, diz.

A segunda etapa do trabalho foi realizada em janeiro deste ano, quando Soares diz ter mergulhado  intensamente no cotidiano de Paloma. Ele passou uma semana na casa de Paloma, convivendo com ela, escutando sua história, revelações, sentimentos, acompanhando suas ações e gestos, os cheiros do ambiente, o som das coisas.

Fez também registros fotográficos, audiovisuais, diários de bordo e diversas anotações cotidianas. “Utilizei a descrição detalhada de cenários, contextos e de personagens (características do jornalismo literário) para compor a escrita. A terceira etapa consistiu na junção de todo o material coletado, a organização da matéria e sua revisão, para depois ser publicada”, acrescenta.

Outras histórias 

Na reportagem realizada Jamerson conta também a história de algumas pessoas trans, a trajetória e a fundação do movimento LGBT em Alagoas e dados oficiais sobre a comunidade trans no Brasil, no Nordeste e no mundo. Reforça que o trabalho que desenvolveu é importante para a comunidade LGBTQI + porque há muito tempo essa população, especialmente,  as mulheres trans e travestis, vem sofrendo um apagamento. “Esse apagamento se estende tanto no campo memorialístico e cultural quanto nas instituições públicas. É no sentido de trazer mais à tona a discussão sobre essa problemática que o trabalho foi feito”.

Além disso, o pesquisador diz que, a existência de uma mulher trans está sendo relatada para ficar na memória alagoana, coisa que vem sendo feita de forma preconceituosa e errada até pela própria mídia. “Não vejo na imprensa tradicional as histórias de grandes personalidades LGBTQIA+ ou que fizeram muito pela comunidade em Alagoas sendo contadas, registradas”.

Aproveita para destacar que um exemplo disso ocorreu no próprio processo de apuração para seu trabalho, onde não encontrou nada sobre Paloma e o seu retrato em matérias de jornais, sites ou livro. Não havia nenhum registro, apenas um curta informação sobre ela, mas ainda assim não era algo mais detalhado.

“Pessoas LGBTQI+ se sentem representadas e adquirem referências quando leem ou sabem mais sobre a história de alguém que foi um ícone local. E quando digo 'ícone', não falo de uma forma superficial, mas, sim, no sentido de que aquela pessoa lutou bastante antes no início para que outras pessoas atualmente pudessem caminhar livremente nas ruas. O meu trabalho também discute a importância da fotografia, do retrato, e a sua relação com a legitimação da identidade social de uma pessoa”, diz.

A temática abordada, a partir de uma foto, despertou o interesse para o desenvolvimento do trabalho porque há um apagamento das histórias e existências de pessoas trans em Alagoas e no Brasil. “Eu queria que essa história do meu TCC, uma reportagem em jornalismo literário,  fosse contada para contribuir com a memória alagoana e com a comunidade LGBTQIA+ no Estado.  A foto de Paloma tem uma alta carga poética e dramática, prende o olhar do espectador e isso me cativou”. 

Futuro

Sobre os próximos passos acadêmicos e profissionais vislumbra mais aprendizados, principalmente, na área que se identifica e tem maior interesse: “Pretendo fazer mestrado na área do jornalismo literário e também na análise de discurso. São duas áreas que eu gosto muito e que me fazem entender mais os processos jornalísticos dentro das diversas realidades que existem e resistem”.

Uma foto como retrato de vida  

A importância do trabalho também é ressaltada pela personagem de uma história real de vida, onde  sempre coube o amor: “Naquele momento da foto feita pelo Celso Brandão eu estava muito envolvida com a vida, com o amor, a paixão, porque a paixão é o pecado que não precisa de perdão. Ela chega e domina o coração. Eu sempre fui cheia de amor e é tudo por amor, o amor é o que importa. Foi um prazer muito grande participar do trabalho. Eu sou uma mulher muito envolvida e agradeço muito a Deus por acontecer tanta coisa linda. Esse momento foi muito importante, e realmente é tudo por amor, o amor é o que importa”, diz Paloma, celebrando a vida.

 Aproveita para também agradecer ao pesquisador que retratou sua trajetória de vida numa  reportagem: “Eu adorei participar da reportagem junto com o Jamerson porque ele foi muito cuidadoso, sempre à disposição e gentil. As entrevistas que ele fez foram muito humanas, naturais, e foram feitas durante o convívio entre a gente mesmo”. 

Na realidade de vida de Paloma, obstáculos enfrentados, mas superados,  também foram citados por ela, que diz: “Eu sempre fui uma mulher muito atraente. O retrato que Celso fez foi realizado em um momento muito difícil de aceitação pela sociedade. Existe o preconceito, mas  é muito importante o caráter da pessoa, as atitudes. Principalmente quando a gente é diferente. Eu sempre fui muito bem recebida na sociedade, talvez pela minha educação, meu caráter e atitudes. Mas claro que  sabemos que existem pessoas com capacidade de fazer coisas horríveis, mas a gente continua lutando”.

Em sua superação, a  lucidez para os contínuos desafios: “Eu já senti muito preconceito dentro da minha própria casa e fora dela também, mas, por outro lado, eu também recebi muito amor pelas pessoas. Eu não posso mudar a vida das pessoas, mas queria ter o poder de fazer isso para vivermos melhor em sociedade”, diz Paloma, com consciência de que a luta é contínua e de que a vida merece ser celebrada.

Para conhecer a reportagem acesse o link.